O lado amargo do açúcar

Meu nome é Laurete Godoy, tenho 81 anos de idade e acabei de sentar na plateia, para assistir a um longo filme do qual sou a personagem central. Dele comentarei trechos que poderão auxiliar a quem estiver vivenciando momentos iguais àqueles que me afligiram em diversos períodos da minha vida. E agora, consciente das situações, vejo o quanto elas afetaram minha trajetória pessoal, esportiva, afetiva e profissional. Porém, foi em 1972 que tudo se tornou preocupante.

Eu havia concluído o curso de educação física, morava em Santos, trabalhava no Fórum à tarde e, à noite, ministrava aulas em duas faculdades. Sentia-me plenamente gratificada na vida profissional, afetiva e, principalmente, financeira. Tudo estava muito bem comigo, porém, a partir de agosto, a saúde passou a me assustar.

       Por morar sozinha e trabalhar demais, não me alimentava direito e, fumante que era, tapeava a fome com cigarro e cafezinho… Passei a sentir muito cansaço, uma espécie de tontura, às vezes o chão parecia ficar ondulado, e isso era acompanhado por tremores nas mãos. Outras vezes sentia um forte desejo de comer doces, ou entrava em pânico, sofrendo a horrível sensação de um desmaio iminente. Neste caso, corria para a farmácia ou para o departamento médico, imaginando ser queda de pressão e, ao medi-la, ela sempre esteve normal. Lembro-me de que à noite era pior. Pensamentos mórbidos geravam medo e eu dormia com a porta do apartamento destrancada porque, se acontecesse alguma coisa comigo no horário noturno, ela não precisaria ser arrombada na manhã seguinte.

Com o tempo veio uma forte depressão acompanhada, eventualmente, da vontade de acabar com tudo. Com o emocional em frangalhos aguentei até o final do ano. Pedi demissão das faculdades e retornei a São Paulo. Submetida a tratamentos médicos, fui tocando minha vida. Alguns períodos eram saudáveis, outros nem tanto, porém uma coisa era certa: por menor que fosse a dose de cerveja, vinho, Campari ou uísque, qualquer bebida alcoólica provocava efeitos avassaladores no meu organismo.

Certa noite, em um baile pré-carnavalesco, tomei um quase nada de uísque e passei tão mal, que precisei ir embora. Tive privação total de sentidos porque, no dia seguinte, não consegui recordar quem havia me levado para casa. Eu morava em um sobrado e lembrei apenas que subi a escada engatinhando. Na manhã seguinte, minha tia desesperou-se quando me viu dormindo, vejam só, debaixo da cama… Não tendo a menor idéia do que havia acontecido, considerei o fato como um homérico pileque.

 Sempre que ocorria um choque emocional eu ficava em frangalhos. Porém, o pior eram as explosões e crises de agressividade incontroláveis, que aconteciam sem explicação e provocavam vergonha e arrependimento depois. Às vezes eu era irritadiça, perdia as estribeiras e criava situações delicadas, principalmente no seio familiar. Quando tudo passava, o que ficava de pior era o clima à minha volta e o meu estado psicológico.

Aconselhada a procurar um psiquiatra, busquei um dos mais renomados de São Paulo, na época. Tomei os medicamentos que ele receitou e segui todas as orientações transmitidas. Ele me aconselhou a parar de fumar. Assim o fiz, melhorei, engordei, recebi alta e voltei a fumar. Com o passar do tempo, tudo recomeçou. Passei por vários e desesperadores apuros até março de 1983.

Foi o abençoado doutor Minoru Koda, cardiologista e clínico geral, que insistiu demais para que eu me submetesse a uma curva glicêmica de cinco horas. Graças a esse doloroso exame foi diagnosticado o problema: eu era hipoglicêmica crônica! Doutor Minoru explicou que não era uma doença, tratava-se de uma disfunção do pâncreas e não havia remédio a ser prescrito. Eu deveria, sim, submeter-me a um severo regime alimentar: abolir completamente refrigerantes, álcool, doces, chocolates etc. Diminuir bastante certos alimentos, comer à vontade outros tantos e alimentar-me a cada três horas, no máximo. Deu um conselho: “Não crie caso, não faça drama e não complique. Corra em busca da solução.”. Eu andava passando tão mal, que segui à risca todas as determinações. Sacudi a poeira da autopiedade, tomei uma decisão firme e, por isso, o dia 6 de abril de 1983 foi um divisor de águas e marcou o início de uma nova vida para mim. De imediato parei de fumar, disciplinei minha alimentação e nunca mais coloquei uma gota de álcool na boca. A melhora foi acontecendo aos poucos e desapareceram os sintomas que tanto me angustiavam.

Em face dos resultados interessei-me pelo assunto e passei a pesquisar. De um modo geral soube que, quando o álcool é ingerido, a primeira coisa que ele retira do organismo é o açúcar – essa informação explicava muitas coisas. O jejum prolongado diminui o açúcar do organismo, por isso, as estatísticas provam que vários acidentes em estradas ocorrem por crise hipoglicêmica do motorista. O mesmo fato pode justificar os desmaios inesperados, o sono excessivo e as crises emocionais. Muitos problemas psicológicos são provocados, ou agravados por hipoglicemia crônica. Acontecem outras implicações reveladoras do problema, que poderão ser mais bem explicadas por um especialista.

Posteriormente, ocorreu um fato que me impressionou e compartilho por ser oportuno. Não me lembro a data, porém, na década de 1980, participei de um curso promovido pelo Instituto Mind Power e ministrado pelo psicólogo João Agripino da Costa Doria Neto. Em certa aula, ele dissertou sobre a influência da psique no organismo, alterando a saúde, afetando o comportamento humano e o relacionamento interpessoal. Finda a explicação, pedi licença e contei como descobri, de forma dolorosa, que a reciprocidade também acontecia: certas disfunções orgânicas influenciavam a psique, alterando o comportamento humano, dificultando e comprometendo os relacionamentos. Contei minha história, falei sobre o tratamento e o regime severo a que me submeti e, quando concluí a narrativa, aconteceu algo surpreendente! Uma das alunas, em lágrimas, veio lá do fim da classe e pediu licença para me dar um abraço. Acabara de descobrir a razão de todas as mazelas psicológicas e emocionais que estavam destruindo seu casamento: sofria de hipoglicemia e acabara de tomar consciência de que o tratamento a que estava sendo submetida era totalmente errado…

Atendendo ao pedido do doutor Dória, encaminhei a ele o material que eu possuía sobre o assunto. Mandei, inclusive, um artigo de Madalena Vieira, publicado na Revista Nova em 1978, cujo início era o seguinte:

“HIPOGLICEMIA –  Uma doença traiçoieira. Você se sente cansada, tensa, preocupada e não sabe por quê? Talvez seja uma das milhares de brasileiras que sofrem desse mal que, frequentemente, escapa dos diagnósticos. 

Sônia andava tão deprimida, desanimada, achando que a vida não tinha graça nenhuma. Suas esperanças de ser promovida no trabalho tinham ido por água abaixo. Foram seis anos de dedicação total como assistente de contabilidade praticamente jogados fora. E tudo isso por quê? Sônia, uma mulher inteligente, eficaz, esforçada, sempre bem-humorada tinha súbitos ataques de  fúria que abalavam até os alicerces do escritório. Não conseguia explicar seus descontroles emocionais. De repente sentia-se trêmula  e explodia antes de conseguir entender o que estava acontecendo.

        Se ela tivesse contado a seu médico que, além disso vivia cansada e tinha frequentes acessos de tontura, ele poderia ter considerado a hipótese de ela sofrer de hipoglicemia, um mal que atinge milhares de brasileiros. Mas, como tinha esses sintomas desde a adolescência, não achou importante mencioná-los e seu médico chegou à conclusão  – muito comum – de que ela necessitava de tranquilizantes e sugeriu um tratamento psicológico.”.

        Nesse texto estava a minha história…

 Hoje, passados 38 anos, vejo o quanto foi valioso o diagnóstico do doutor Minoru Koda, o regime que ele recomendou, a severa mudança de hábitos que me impus sem pestanejar e que mudou a minha vida, melhorando minha condição física, mental e, especialmente, emocional.

       Na atualidade, outros exames mais modernos substituíram a dolorosa, porém abençoada Curva Glicêmica de 5 horas a que fui submetida há quase quatro décadas e que me levou a conhecer…

       O lado amargo do açúcar.

                    *Laurete Godoy é pesquisadora e escritora.

Complementando: Quando comecei o regime, mudei apenas hábitos alimentares, mas continuei frequentando o mesmo grupo de amigos e participando das mesmas diversões. Nos eventos sociais, em vez da bebida alcoólica, eu solicitava água mineral com gás, colocava dois dedos de refrigerante, saboreava a mistura a cada gole e garanto que aproveitava muito mais os momentos de descontração, por estar plenamente consciente e no comando de todos os meus sentidos. Também passei a ter sempre comigo algum alimento, ou uma fruta, para evitar o jejum prolongado. Oportunamente, contarei como deixei de fumar repentinamente, sem consequências… Essas duas atitudes que adotei – parar de ingerir bebida alcoólica e parar de fumar-, mudaram radicalmente a minha vida para muito melhor! Além disso, jamais perdi de vista o conselho do doutor Minoru Koda, que se transformou, para mim, em um poderoso mantra e me ajudou nas mais diversas situações: “NÃO CRIE CASO, NÃO FAÇA DRAMA E NÃO COMPLIQUE! CORRA EM BUSCA DA SOLUÇÃO.”.

 

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